Desobediência Civil

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

1. OBEDIÊNCIA E RESISTÊNCIA. - Para compreender o que se entende por "Desobediência civil é necessário partir da consideração de que o dever fundamental de cada pessoa obrigada a um ordenamento jurídico é o dever de obedecer às leis. Este dever é chamado de obrigação política. A observância da obrigação política por parte da grande maioria dos indivíduos, ou seja a obediência geral e constante às leis é, ao mesmo tempo, a condição e a prova da legitimidade do ordenamento, se weberianamente entendermos por "poder legítimo aquele poder cujas ordens são obedecidas enquanto tais, independentemente de seu conteúdo. Pela mesma razão pela qual um poder que pretende ser legítimo encoraja a obediência e desencoraja a desobediência, enquanto que a obediência às leis é uma obrigação e a desobediência uma coisa ilícita, punida de várias maneiras, como tal.

A Desobediência civil é uma forma particular de desobediência, na medida em que é executada com o fim imediato de mostrar publicamente a injustiça da lei e com o fim mediato de induzir o legislador a mudá-la. Como tal é acompanhada por parte de quem a cumpre de justificativas com a pretensão de que seja considerada não apenas como lícita mas como obrigatória e seja tolerada pelas autoridades públicas diferentemente de quaisquer outras transgressões. Enquanto a desobediência comum é um ato que desintegra o ordenamento e deve ser impedida ou eliminada a fim de que o ordenamento seja reintegrado em seu estado original, a Desobediência civil é um ato que tem em mira, em última instância, mudar o ordenamento, sendo, no final das contas, mais um ato inovador do que destruidor. Chama-se civil precisamente porque quem a pratica acha que não comete um ato de transgressão do próprio dever de cidadão, julgando, bem ao contrário, que está se comportando como bom cidadão naquela circunstância particular que pende mais para a desobediência do que para a obediência. Exatamente pelo seu caráter demonstrativo e por seu fim inovador, o ato de Desobediência civil tende a ganhar o máximo de publicidade. Este caráter publicitário serve para distingui-la nitidamente da desobediência comum: enquanto o desobediente civil se expõe ao público e só expondo- se ao público pode esperar alcançar seus objetivos, o transgressor comum deve realizar sua ação no máximo segredo, se desejar alcançar suas metas.


As circunstâncias defendidas pelos fautores da Desobediência civil e que favorecem mais a obrigação da desobediência do que a da obediência são substancialmente três: o caso da lei injusta, o caso da lei ilegítima (isto é, emanada de quem não tem o direito de legislar) e o caso da lei inválida (ou inconstitucional). Segundo os fautores da Desobediência civil, em todos estes casos não existe lei em seu sentido pleno: no primeiro caso não o é substancialmente; no segundo e no terceiro não o é formalmente. O principal argumento deles é o de que o dever (moral) de obedecer às leis existe na medida em que é respeitado pelo legislador o dever de produzir leis justas (conformes aos princípios de direito natural ou racional, aos princípios gerais do direito ou como se lhes queira chamar) e constitucionais (ou seja, conformes aos princípios básicos e às regras formais previstas pela Constituição). Entre cidadão e legislador haveria uma relação de reciprocidade: se é verdade que o legislador tem direito à obediência, também é verdade que o cidadão tem o direito de ser governado com sabedoria e com leis estabelecidas.

II. VÁRIAS FORMAS DE RESISTÊNCIA. - Se é lícito desobedecer às leis, em que casos, dentro de que limites e por parte de quem, tornou-se já um problema tradicional que foi objeto de infinitas reflexões e discussões entre filósofos, moralistas, juristas, teólogos, etc. A expressão "Desobediência civil , a que nos referimos, bem ao contrário, é moderna e entrou no uso corrente através dos escritores políticos anglo-saxões, a começar pelo ensaio clássico Civil disobedience (1849) de Henry David Thoreau, no qual o escritor americano declara recusar o pagamento das taxas ao Governo que as emprega para fazer uma guerra injusta (a guerra contra o México), afirmando: "a única obrigação que eu tenho o direito de assumir é a de eu fazer em cada circunstância o que eu acho justo . Depois, perante a conseqüência do próprio ato que poderia levá-lo à prisão, responde: "Num governo que prende injustamente qualquer pessoa, o verdadeiro lugar para um homem justo é a prisão .

Em sentido próprio, a Desobediência civil é apenas uma das situações em que a violação da lei é considerada como eticamente justificada por quem a cumpre ou dela faz propaganda. Trata-se de situações que habitualmente são compreendidas pela tradição dominante da filosofia política sob a categoria do direito à resistência. Alexandre Passerin d'Entrèves distinguiu oito modos diferentes de o cidadão se comportar diante da lei:

1º - obediência de consentimento; 2º - obséquio formal; 3º - evasão oculta; 4º - obediência passiva; 5º - objeção de consciência; 6º - desobediência civil; 7º - resistência passiva; 8º - resistência ativa. As formas tradicionais de resistência começam na resistência passiva e terminam na resistência ativa. A Desobediência civil, em seu significado restrito, é uma forma intermédia. Na esteira de Rawls, d'Entrêves define-a como uma ação ilegal, coletiva, pública e não violenta, que se atém a princípios éticos superiores para obter uma mudança nas leis. Podemos distinguir as situações que entram na categoria geral do direito de resistência, baseados em diversos critérios calcados no tipo de desobediência em ato: a) omissiva ou comissiva que consiste em não fazer o que é mandado (o serviço militar, por exemplo) ou em fazer aquilo que é proibido (é o caso do negro que se senta num lugar público interditado a pessoas de cor); b) individual ou coletiva, segundo é realizada por um indivíduo isolado (é típico o caso do objetor de consciência, que geralmente age só e em decorrência de um ditame da própria consciência individual) ou por um grupo cujos membros condividem os mesmos ideais (são exemplo típico disso as campanhas de Gandhi pela libertação da índia do domínio britânico); c) clandestina ou pública, ou seja preparada e realizada em segredo, como acontece e não pode deixar de acontecer no atentado anárquico baseado na surpresa, ou, então, anunciada antes da execução, como acontece habitualmente com a ocupação das fábricas, de casas, de escolas, feita com a finalidade de obter a revogação de normas repressivas ou impeditivas consideradas discriminatórías; d) pacífica ou violenta, isto é, realizada através de meios não violentos, como o sit-in e toda a forma de greve, de uma maneira geral (falamos tanto da greve ilegal quanto da greve lícita, havendo sempre formas de greve consideradas ilícitas), ou com armas próprias ou impróprias, como acontece geralmente numa situação revolucionária (note- se que a passagem da ação não violenta para a ação violenta coincide muitas vezes com a passagem da ação omissiva para a ação comissiva); e) voltada para a mudança de uma norma ou de um grupo de normas ou até do ordenamento inteiro. Sua natureza não é de molde a questionar todo o ordenamento, como acontece com a objeção de consciência em relação à obrigação de prestar o serviço militar, muitas vezes em circunstâncias excepcionais, como é o caso de uma guerra considerada particularmente injusta (para darmos um exemplo recente que colocou em discussão com particular intensidade o problema da Desobediência civil, lembramos a guerra do Vietnam) nem tende tampouco a derrubar um sistema por inteiro como acontece com a ação revolucionária. Além disso, a desobediência pode ser, segundo uma distinção que remonta às teorias políticas da idade da Reforma, passiva ou ativa. Ë passiva aquela que visa à parte preceptiva da lei e ~ão à parte punitiva; por outras palavras, é aquela que é realizada com a vontade precisa de aceitar a pena que daí resultar e, enquanto tal, na medida em que não reconhece ao Estado o direito de impor obrigações contra a consciência, reconhece-lhe o direito de punir toda a violação das próprias leis. Ativa é a que se dirige ao mesmo tempo para a parte preceptiva e para a parte punitiva da lei, de tal modo que o que a realiza não se limita a violar a norma mas tenta subtrair-se à pena de todas as maneiras.

Combinando os diversos aspectos de cada critério com todos os outros se obtém um número notável de situações que não é o caso enumerar aqui. Apenas para dar um exemplo, a objeção de consclencta ao serviço militar (nos países onde a lei não a reconhece) é omissiva, individual, pública, pacífica, parcial e realiza uma forma de desobediência passiva. Outro exemplo clássico é o do tiranicidio, que é comissivo, geralmente individual e clandestino (não declarado por antecipação), violento e total (tende, como o dos monarcômacos das guerras religiosas dos séculos XVI e XVII ou o dos anarquistas das lutas sociais do século XIX, para uma mudança radical do Estado em exercício) e realiza, também, uma forma de desobediência ativa. Voltando à Desobediência civil, tal como é concebida habitualmente na filosofia política contemporânea - que leva em consideração as grandes campanhas não violentas de Gandhi ou as campanhas para a abolição da discriminação racial nos Estados Unidos - ela é omissiva, coletiva, pública, pacífica, não necessariamente parcial (a ação de Gandhi foi certamente uma ação revolucionária) e não necessariamente passiva (as grandes campanhas contra a discriminação racial tendem a não reconhecer ao Estado o direito de punir os pretensos crimes de lesa discriminação).


III. Os CARACTERES ESPECÍFICOS DA DESOBEDIÊNCIA CIVIL. - Com a finalidade de distinguir a Desobediência civil de todas as outras situações que entram historicamente na vasta categoria do direito de resistência, as duas características mais relevantes entre as que acima foram citadas são a ação de grupo e a não violência. A primeira característica serve para distinguir a Desobediência civil dos comportamentos de resistência individual sobre os quais se apoiaram geralmente as doutrinas da resistência na história das lutas contra as várias formas de abuso de poder. Típico ato de resistência individual é a objeção de consciência (pelo menos na maior parte dos casos em que a recusa de servir às Forças Armadas não é feita em nome da militância em uma seita religiosa, como a dos Mórmons ou dos Testemunhas de Jeová) ou o caso hipotético aventado por Hobbes daquele que se rebela contra o soberano que o condena à morte e lhe impõe que se mate. A desobediência é individual mesmo quando apela para a consciência de outros cidadãos, como é o caso de Thoreau em não pagar as taxas. Individual também o caso extremo de resistência à opressão, o tiranicídio. A segunda característica - a da não violência - serve para distinguir a Desobediência civil da maior parte das formas de resistência de grupo, que diferentemente das individuais (geralmente não violentas) deram lugar a manifestações de violência onde quer que foram realizadas (desde o motim à rebelião, e desde a revolução à guerrilha).

Se portanto tomarmos em consideração os dois critérios mais característicos dos vários fenômenos de resistência, o que distingue resistência individual de resistência coletiva e resistência violenta de resistência não violenta, a Desobediência civil, enquanto fenômeno de resistência de grupo e não violento, ao mesmo tempo, ocupa um lugar preciso e bem delimitado entre os dois tipos extremos, historicamente mais freqüentes e também mais estudados, da resistência individual não violenta e da resistência violenta de grupo. A Desobediência civil tem o caráter de fenômeno de grupo próprio da resistência coletiva, pelo menos em certos casos de massa e, ao mesmo tempo, tem o caráter predominante da não-violência próprio da resistência individual. Por outras palavras, é uma tentativa de repëlir do grupo "sedicioso as técnicas de luta que lhe são familiares (o recurso às armas, próprias ou impróprias) e levá-lo a adotar comportamentos que são característicos do objetor individual (a recusa de porte de armas, o não-pagamento de taxas, a abstenção da realização de um ato que repugna à própria consciência, como a adoração de deuses falsos e mentirosos, etc.).

A Desobediência civil, enquanto é uma das várias formas que pode assumir a resistência à lei, é também e sempre caracterizada por um comportamento que põe intencionalmente em ação uma conduta contrária a uma ou mais leis. Deve portanto distinguir-se de comportamentos que muitas vezes a acompanham e que, embora tenham o mesmo fim de contestar a autoridade fora dos canais normais da oposição legal e do protesto público, não consistem numa violação intencional da lei. A primeira distinção a fazer é entre Desobediência civil e o fenômeno recente e clamoroso da contestação, ainda que muitas vezes a contestação termine em episódios de Desobediência civil. O melhor modo de distinguir a Desobediência civil da contestação é o recurso aos dois respectivos contrários: o contrário de desobediência é a obediência e o contrário de contestação é a aceitação. Quem aceita um sistema está obedecendo a ele; mas pode-se obedecer sem o aceitar (na verdade a maior parte dos cidadãos obedece por força de inércia, por hábito ou por imitação ou ainda por um vago medo das conseqüências de uma eventual infração, sem entretanto ficar convencida de que o sistema a que obedece seja o melhor dos sistemas possíveis). Por conseqüência, a desobediência na medida em que exclui a obediência constitui um ato de ruptura que põe em questão o ordenamento constituído ou uma parte dele, mas não o coloca efetivamente em crise. Enquanto a Desobediência civil corresponde sempre a uma ação ainda que meramente demonstrativa (rasgar, por exemplo, o certificado de convocação para o serviço militar), a contestação é feita através de um discurso crítico, através de um protesto verbal ou da enunciação de um slogan (não é por acaso que o lugar onde se desenvolve mais freqüentemente um comportamento de contestação é a assembléia, que é um lugar onde não se age mas se fala. O outro comportamento que convém distinguir da Desobediência civil é o do protesto sob a forma não de discurso mas de ação exemplar, como jejum prolongado ou o suicídio público mediante formas clamorosas de autodestruição (como o pegar o fogo no próprio corpo depois de derramar nele matérias inflamáveis). Antes de tudo, estas formas de protesto não são, como a desobediência, ilegais (se se pode discutir a liceidade do suicídio, não é certamente discutível a liceidade de jejuar na medida em que não existe a obrigação jurídica de comer); em segundo lugar, elas pretendem atingir como meta modificar uma ação da autoridade pública considerada injusta, não de uma forma direta, isto é, fazendo o contrário daquilo que deveria ser feito, mas indiretamente, buscando despertar um sentimento de reprovação ou de execração contra a ação que se quer combater.



IV. A DESOBEDIÊNCIA CIVIL E AS SUAS JUSTIFICATIVAS. - A Desobediência civil é, como se disse no início, um ato de transgressão da lei que pretende ser justificado e que acha nesta justificação, portanto, a razão da própria diferenciação de todas as outras formas de transgressão. A fonte principal de justificação é a idéia originariamente religiosa e, posteriormente laicizada na doutrina do direito natural, de uma idéia moral, que obriga todo o homem enquanto homem e que como tal obriga independentemente de toda a coação, e por conseguinte em consciência, distinta da lei promulgada pela autoridade política, que obriga apenas exteriormente e se alguma vez obriga em consciência é apenas na medida em que é conforme à lei moral. Ainda hoje, os grandes movimentos de Desobediência civil, desde Gandhi até Luther King, registraram uma forte conotação religiosa. Gandhi disse certa vez a um tribunal que devia julgá-lo por um ato de Desobediência civil: "Ouso fazer esta declaração não certamente para subtrair-me à pena que deveria ser-me aplicada, mas para mostrar que eu desobedeci à ordem que me havia sido dada não por falta de respeito à autoridade legítima, mas para obedecer à lei mais alta do nosso ser - a voz da consciência (Autobiography, V Parte, cap. XV).

A outra fonte histórica de justificação é a doutrina de origem jusnaturalista, transmitida depois à filosofia utilítarista do século XIX, que afirma a supremacia do indivíduo sobre o Estado e de que deriva a dupla afirmação de que o indivíduo tem alguns direitos originários e inalienáveis e que o Estado é uma associação criada pelos próprios indivíduos através do consenso comum (contrato social) para proteger seus direitos fundamentais e assegurar a sua livre e pacífica convivência. O grande teórico do direito de resistência, John Locke, é jusnaturalista, individualista e contratualista e considera o Estado como uma associação surgida do consenso comum dos cidadãos para a proteção de seus direitos naturais. Ele exprime seu pensamento deste modo: "O fim do Governo é o bem dos homens; e que coisa é melhor para a humanidade: que o povo se ache sempre exposto à ilimitada vontade da tirania ou que os governantes se achem por vezes expostos à oposição, quando se tornam excessivos no uso de seu poder e o usam na destruição e não na conservação das prerrogativas do povo? (Segundo tratado sobre o Governo, § 229).

Uma terceira fonte de justificação é, finalmente, a idéia libertária da perversidade essencial de toda a forma de poder sobre o homem, especialmente do máximo poder que é o Estado com o corolário de que todo o movimento que tende a impedir a prevaricação do Estado é uma premissa necessária para instaurar o reino da justiça, da liberdade e da paz. O ensaio de Thoreau começa com estas palavras: "Eu aceito de bom grado o mote: O melhor Governo é o que governa menos - . . . Levado às extremas conseqüências conduz a esta outra afirmação em que também creio: - O melhor Governo é o que de fato não governa . Manifesta é a inspiração libertária em alguns grupos de protesto e de mobilização de campanhas contra a guerra do Vietnam nos Estados Unidos dos anos 60, que teve no livro de Noam Chomsky, Os novos mandarins, 1968, uma das expressões culturais mais sábias.



BIBLIOGRAFIA. - Aui. VÁR., Civil di sobedience. Theorv and practicc, New York 1969; S. GENDIN, Governamental toleration of civil disobedience, in Philosophy and political aaion, Oxford University Press, London 1972 (e bibliografia citada); A. PASSERIN D'ENTREVES, Obbedienza e resistenza in una società democratica, Edizioni di Comunità, Milano 1970; Id., Obbligo politico e libertá di coscienza, in Riv. int. fil. dir. , 1973; R. P0LIN, Lobliga?ionpolitique, P. U. F., Paris 1971; M. WALZER, Obligation: Essays on disobedience, war and citizenship, Harvard University Press, Cambridge Mass. 1970.

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